Em diferentes culturas e épocas, histórias de pessoas que afirmam ter “visitado o outro lado” sempre despertaram fascínio e debate. Conhecidas como Experiências de Quase Morte (EQM), essas vivências geralmente acontecem em situações críticas — durante uma parada cardiorrespiratória, acidentes graves ou em estados de coma profundo — e incluem descrições vívidas de luzes intensas, encontros com entes falecidos e uma sensação de paz profunda. Embora sejam fenômenos subjetivos, vêm sendo cada vez mais estudados pela ciência, que tenta compreender se a EQM é apenas uma reação neurológica extrema ou se abre janelas para algo além da vida biológica.
O termo e sua origem
O conceito moderno de EQM ganhou nome em 1975, quando o psiquiatra norte-americano Raymond Moody publicou o livro Life After Life (“Vida Depois da Vida”). Na obra, ele reuniu relatos de mais de 150 pessoas que, após passarem por situações de risco mortal, descreveram experiências semelhantes.
Moody foi o primeiro a cunhar a expressão Near-Death Experience (NDE), traduzida para o português como Experiência de Quase Morte. Seu trabalho marcou um divisor de águas: até então, narrativas desse tipo eram tratadas mais no campo da religião ou da espiritualidade. A partir de Moody, o fenômeno começou a ser considerado também um objeto legítimo de pesquisa psicológica e médica.
O que significa uma EQM
Uma Experiência de Quase Morte é definida como um conjunto de percepções e sensações relatadas por pessoas que estiveram em situação crítica de risco vital, mas sobreviveram.
Entre os elementos mais recorrentes estão:
- A sensação de estar fora do corpo, observando a cena de cima.
- A travessia por um túnel em direção a uma luz intensa.
- O encontro com parentes falecidos, figuras religiosas ou seres de luz.
- A revisão panorâmica da própria vida, como um “filme” rápido de memórias.
- Uma sensação de paz, ausência de dor e plenitude.
- A dificuldade ou até resistência em voltar ao corpo físico.
Essas experiências não ocorrem apenas em contextos médicos. Relatos semelhantes aparecem em episódios de afogamento, acidentes de trânsito, quedas de grandes alturas e até durante ataques cardíacos em casa, antes da chegada de socorro.
As EQMs na história da humanidade
Apesar do termo ser recente, relatos de experiências no limiar da morte atravessam a história da humanidade. Textos religiosos antigos descrevem vivências muito parecidas com as que hoje chamamos de EQM.
No Tibete, o Bardo Thödol (Livro Tibetano dos Mortos) fala de visões de luzes e seres logo após a morte. No Egito Antigo, o Livro dos Mortos descrevia a jornada da alma por portais luminosos. Na tradição grega, o mito de Er — um soldado que morreu em batalha e reviveu para contar o que viu no “outro lado” — apresenta paralelos claros com os relatos modernos.
Essas conexões sugerem que a EQM é um fenômeno humano universal, atravessando culturas e épocas.
O início das pesquisas científicas
Foi a partir dos anos 1970 que a EQM entrou no radar da ciência. Após o impacto do livro de Raymond Moody, outros pesquisadores começaram a investigar o tema com métodos mais sistemáticos.
O cardiologista holandês Pim van Lommel é um dos nomes mais citados. Em 2001, publicou na revista médica The Lancet um estudo com 344 pacientes que sofreram parada cardíaca. Cerca de 18% relataram algum tipo de EQM, e muitos descreveram detalhes que pareciam incompatíveis com o estado clínico de inconsciência profunda.
Outro destaque é Bruce Greyson, psiquiatra da Universidade da Virgínia. Ele desenvolveu a chamada Escala Greyson, um questionário que mede a intensidade das EQMs e se tornou referência mundial em pesquisas.
No Reino Unido, o intensivista Sam Parnia coordena estudos de reanimação e consciência no momento da morte. Seu projeto AWARE (Awareness During Resuscitation), iniciado em 2008, envolveu dezenas de hospitais e buscou verificar relatos objetivos de percepção durante a parada cardíaca.
Esses pesquisadores representam a linha de frente de um campo que ainda divide opiniões entre médicos, psicólogos, filósofos e teólogos.
Características recorrentes
A literatura científica e os relatos pessoais sobre EQM identificaram um padrão de experiências, ainda que cada caso tenha suas singularidades. Entre as características mais recorrentes estão:
- Sensação de paz e ausência de dor: muitos relatam um estado de tranquilidade absoluta, mesmo em circunstâncias dramáticas.
- Experiência fora do corpo (EFC): sensação de flutuar e observar o próprio corpo “de fora”, às vezes com detalhes verificados depois.
- Passagem por túnel: percepção de movimento em direção a uma luz brilhante.
- Encontro com seres ou entes: visões de parentes falecidos, figuras religiosas ou seres de luz.
- Revisão da vida: lembranças de acontecimentos passados projetadas de forma panorâmica.
- Barreiras ou fronteiras: a sensação de chegar a um limite, de onde não se poderia prosseguir sem “morrer de fato”.
- Transformação pessoal: após a experiência, muitos relatam mudanças profundas em suas crenças, atitudes e valores.
Explicações científicas possíveis
A ciência ainda não tem consenso sobre a origem das EQMs. Algumas hipóteses incluem:
- Falta de oxigênio no cérebro (hipóxia cerebral): poderia gerar alucinações visuais e sensação de bem-estar.
- Descarga de neurotransmissores: substâncias como endorfinas e serotonina, liberadas em situações de estresse extremo, poderiam provocar euforia.
- Atividade anormal do lobo temporal: responsável por processar memórias e experiências emocionais intensas.
- Efeito psicológico: o medo da morte poderia desencadear respostas simbólicas para confortar o indivíduo.
Apesar disso, há relatos que desafiam explicações puramente neurológicas, como pessoas que descrevem conversas ou procedimentos ocorridos enquanto estavam clinicamente inconscientes.
Impactos pessoais e sociais
Independentemente da interpretação, as EQMs têm efeitos duradouros na vida de quem as vivencia. Muitos sobreviventes relatam uma mudança de perspectiva: passam a valorizar mais as relações humanas, a espiritualidade e o sentido da existência, enquanto reduzem a importância de bens materiais.
Em alguns casos, a experiência é transformadora a ponto de alterar carreiras, relacionamentos e visões de mundo. Também há registros de dificuldades: algumas pessoas têm crises de identidade ou sofrem rejeição por compartilhar relatos que desafiam a lógica materialista.
No campo social, o tema gerou uma explosão de interesse em livros, documentários, séries e grupos de apoio. O próprio Raymond Moody continua ativo, participando de conferências sobre consciência e espiritualidade.
A fronteira entre ciência e espiritualidade
O debate sobre as EQMs frequentemente toca na questão maior: a consciência sobrevive após a morte física?
Para cientistas como Greyson e Parnia, o objetivo não é provar a existência de vida após a morte, mas investigar como o cérebro e a mente funcionam em situações extremas. Já para grupos religiosos e espiritualistas, as EQMs são vistas como evidência de que a consciência transcende o corpo.
Esse diálogo entre ciência e espiritualidade é um dos pontos que tornam o estudo das EQMs tão intrigante.